ERIKA BECHARA
O Brasil foi abençoado com biomas de uma riqueza ambiental admirável: Amazônia, Mata Atlântica, Cerrado, Caatinga, Pantanal e Pampas. Mas, apesar dos indispensáveis serviços ambientais que prestam em benefício da saúde, segurança e bem-estar da coletividade, e da sobrevivência de uma gama de atividades econômicas, sofrem com um desmatamento descontrolado.
O STF está julgando diversas ações sobre a omissão do governo federal no combate ao desmatamento da Amazônia (o chamado Pacote Verde), tendo a Ministra Carmen Lúcia dado um voto primoroso em duas delas, em que atuou como relatora – a ADPF 760 e ADO 54 – reconhecendo a destruição das estruturas do Estado (que chamou de “cupinização institucional”) e o estado de coisas inconstitucional na degradação do bioma.
E isso acontece quando estamos às vésperas de celebrar os 10 anos do Código Florestal, que, prometia-se, traria mais segurança jurídica e maior nível de proteção das nossas florestas (conversa que nunca convenceu muito, haja vista o punhado de retrocessos ambientais que a nova lei trouxe, e que agora estão sedimentados por conta da decisão proferida pelo STF no julgamento das quatro ações diretas de inconstitucionalidade e na ação declaratória de constitucionalidade movidas em face do novo Código).
Por isso olhamos com apreensão e uma certa incredulidade o movimento do Congresso Nacional no sentido inverso ao do controle do desmatamento, chegando mesmo a incentivá-lo.
A Reserva Legal é um dos institutos sob ataque.
Reserva Legal é uma área vegetação nativa que todo imóvel rural deve manter. Em regra, o tamanho da Reserva Legal é de 20% da propriedade. Apenas na Amazônia Legal é medida é distinta, pois em área de cerrado é 35% e em área de floresta é 80%. Em tais áreas não é permitido o corte raso, por isso não é possível suprimir a vegetação para plantio de pasto ou cultura agrícola.
O Estado do Mato Grosso faz parte da Amazônia Legal, juntamente com os Estados do Acre, Pará, Amazonas, Roraima, Rondônia, Amapá, Tocantins e Maranhão (art. 3, I, Lei 12.651/2012). Logo, as áreas de florestas neste Estado têm Reserva Legal de 80% e as de cerrado, 35%. Mas em fevereiro de 2022 foi apresentado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 337/2022 para simplesmente excluir o Mato Grosso da Amazônia Legal, com a finalidade explícita de reduzir a Reserva Legal do estado pra 20%. Esse é o fundamento dado, sem cerimônia, na exposição de motivos: “No Brasil como um todo, há pouco mais de 11 milhões de hectares de déficit de reserva legal, 21,7% em Mato Grosso. O custo econômico para recuperação das reservas legais, ou para compensação dessa imensa área seria muito grande, e injustificável para uma das regiões agrícolas mais importantes do país. Retirar o estado da Amazônia Legal reduziria essa exigência ao piso de 20%, poupando os produtores mato-grossenses das despesas necessárias à manutenção de até 80% de terras sem uso agropecuário.” Segundo Nota Técnica do Observatório do Código Florestal, a aprovação do PL liberará pelo menos 10 milhões de hectares para o desmatamento e reduzirá em torno de 3,3 milhões de hectares a área sujeita a restauração em virtude de desmatamento ilegal[1]. Tudo o que o Brasil exportador de commodities não precisa, haja vista a crescente rejeição a produtos provenientes de áres desmatadas – vale lembrar que a Comissão Europeia está em vias de aprovar uma diretiva – Directive on Corporate Sustainable Due Diligence – sobre importação de commodities, que para submeter alguns produtos, como soja, madeira e carne bovina, a uma due diligence antes de serem colocados na União Europeia, que verifique se foram produzidos de acordo com as leis do seu país e com desmatamento zero (a partir de dezembro de 2020).
Mas esse não é o único projeto de lei anti-Reserva Legal. Está em discussão no Senado o PL 2374/2020 que aumenta em 4 (quatro) anos a anistia dada pelo Código Florestal a quem desmatou Reserva Legal ilegalmente.
É que embora a Reserva Legal já fosse obrigatória na vigência do antigo Código Florestal de 1965, muitos proprietários rurais ignoraram a obrigação, desmataram e ocuparam a área. Como agiram em desacordo com a lei, para voltarem a cumpri-la deveriam ser obrigados a restaurar a vegetação da Reserva Legal na própria propriedade. Mas o Código Florestal de 2012 entendeu que era o caso de aliviar a situação de quem descumpriu a legislação até uma certa data – 22 de julho de 2008 – dando uma série de vantagens para a regularização da situação, dentre as quais a compensação de Reserva Legal fora da propriedade (preservando o uso econômico do imóvel, instituído ao arrepio da lei).
Não sendo o bastante, o projeto de lei ora no Senado quer esticar esse marco temporal para acolher os proprietários que desmataram a área da Reserva Legal até 25 de maio de 2012, pra permitir a continuidade das atividades econômicas ali desenvolvidas. Ainda que o PL exija uma compensação com o dobro da área da Reserva Legal original, a medida não deixa de ser um prêmio para quem afrontou a legislação florestal da época. Fora que essas constantes flexibilizações da legislação para os infratores criam uma sensação de que sempre virá uma norma para socorrê-los no momento de aperto, o que não é um bom estímulo ao cumprimento da lei.
A falta de cuidado com nossos preciosos biomas é injustificável, além de ser um tiro no pé pois o desmamento galopante atende interesses particulares de alguns poucos grupos mas produz suas nefastas consequências para toda a coletividade. O que se espera do Brasil que assinou, em 2021, na Cúpula do Clima (COP 26), a Declaração de Glasgow sobre Florestas, é uma ação contundente de controle de desmatamento, que não perimita mais que a supressão ilegal da vegetação nativa bata um recorde atrás do outro.
[1] Disponível em https://observatorioflorestal.org.br/nota-tecnica-pl337-22-proposta-de-retirada-do-mato-grosso-da-amazonia-legal-traz-prejuizos-ao-brasil-em-beneficio-de-poucos/; acesso em 21 mai.2022