PortugueseEnglishSpanish
Pós-Doutoramento em Direito Ambiental (UFSC). Doutora em Direito (UFSC). Doutoramento Sanduíche (Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra). Mestre em Direito Público (PUCRS). Professora Adjunta da Escola de Direito (PUCRS). Coordenadora da Especialização em Direito Ambiental e Sustentabilidade (PUCRS). Advogada.

FERNANDA LUIZA FONTOURA DE MEDEIROS

A proteção dos animais no Direito brasileiro não pode ser considerado algo desconhecido. Desde o advento da Constituição Federal de 1988 há o reconhecimento de que os animais são sencientes e não podem ser submetidos a nenhuma prática de maus-tratos. A regra constitucional de vedação de crueldade reconhece que os animais possuem o direito de não terem violada a sua dignidade e aos humanos, no mínimo, o dever de proteção.

Não há mais espaço para o silencio do Direito e, consequentemente, o silencio do Poder Judiciário para os casos que envolvem maus-tratos, violência, sofrimento contra animais. O Brasil tem se destacado como um grande responsável pelas pesquisas científicas que envolvem a proteção jurídica dos animais. Já são mais de 30 anos de estudos e pesquisas na área, produzindo um arcabouço doutrinário significativo no país.

O Caso Boss está alicerçado nos danos sofridos por um cão de estimação da raça shih tzu. Em 2020 um cão, membro de uma família multiespécie, teve sua mandíbula quebrada enquanto estava sob os cuidados de um petshop, em Porto Alegre. Os tutores do animal, o cão Boss, procuraram pelo advogado e professor universitário Rogério Rammê[1] para o ajuizamento de ação indenizatória[2].

Rammê sustenta que os

“(…) animais de estimação hoje em dia são considerados membros não-humanos das nossas famílias e a jurisprudência já consolidou o entendimento acerca do direito de tutores de animais de estimação à reparação por danos materiais ou morais que decorram de atos dolosos ou culposos praticados por terceiros que prejudiquem o bem-estar físico ou psicológico dos animais.”

O Caso Boss chamou atenção na grande mídia[3], pois o advogado ingressou com o pedido tendo, também, o animal como autor. O pedido foi negado em primeiro e em segundo grau, mas apesar de não reconhecer a possibilidade de o animal postular em nome próprio a indenização pelos danos que sofreu, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) reconheceu que o Boss é sujeito de direito[4]. Na sentença houve a condenação do petshop pelos danos sofridos pelos tutores do Boss, sendo excluído o dano sofrido pelo animal.

No acórdão do Agravo de Instrumento[5], o Desembargador Carlos Eduardo Richinitti pondera que:

“De outro lado, embora a legislação brasileira reconheça os animais como sujeitos de direitos, na medida em que lhes garante uma vida digna e sem maus tratos, e a legislação estadual acima citada ainda expressamente conceba os animais de estimação como seres sencientes, de natureza jurídica sui generis, vedando o seu tratamento como coisa e garantindolhes a tutela jurisdicional, também elucidou que eles são sujeitos de direitos despersonificados. E a ausência de personalidade impede, ao menos no âmbito do direito processual civil, que esses sujeitos de direito figurem como parte em ações judiciais. Os seus direitos à existência digna, sem maus tratos e crueldade devem ser buscados pelo Poder Público, por associações civis, por fundações ou mesmo pelos responsáveis/guardiões desses animais em seu favor.”

Há, ainda, muito a se trilhar sobre a matéria. É indubitável o reconhecimento dos avanços já verificados no Direito brasileiro, tanto na esfera da produção científica quanto nas discussões por intermédio de ações judiciais no Poder Judiciário. Contudo, muito ainda se tem a caminhar. Rammê pontua que

“A sentença restabelece a justiça ao determinar uma reparação pelos danos materiais e morais suportados pelos tutores de Boss. Animais de estimação hoje em dia são considerados membros não-humanos das nossas famílias e a jurisprudência já consolidou o entendimento acerca do direito de tutores de animais de estimação à reparação por danos materiais ou morais que decorram de atos dolosos ou culposos praticados por terceiros que prejudiquem o bem-estar físico ou psicológico dos animais. Infelizmente, no presente caso, com a exclusão do Boss como parte do processo, a reparação se limitou aos danos dos tutores de Boss, não contemplando o dano animal, ou seja, a dor física e psicológica causada e sentida por Boss, ser senciente e sujeito de direito.  Mesmo assim, o caso do Boss contribuiu para o avanço do Direito Animal no Brasil, pois provocou um amplo debate sobre a condição dos animais como sujeitos de direito, bem como sobre questões processuais específicas e pouco debatidas como distinção entre capacidade de ser parte e a capacidade processual de animais. O caso também contribuiu para o surgimento de novas ações com animais como autores, sendo importante destacar que recentemente o Tribunal de Justiça do Paraná acolheu a tese de que animais podem ser autores de ações judiciais que objetivem uma reparação específica pelo dano animal sofrido, dede que devidamente representados em juízo e cuja indenização deve ser utilizada em proveito do animal vitimado pelo dano.[6]

O Caso Boss, de fato, não foi o primeiro a levar a discussão da jurisdição terciária a análise do Poder Judiciário. Diversos outros precedentes já podem ser encontrados em todo o território nacional, com destaque ao Caso Spyke e Rambo em que o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná – TJPR, reconheceu, por unanimidade de votos, a capacidade dos cães como autores da ação[7]. Se você se interessou sobre o tema há, também, a recente obra do Prof. Dr. Vicente de Paula Ataíde Jr[8] – Capacidade Processual dos Animais: a judicialização do Direito Animal no Brasil.

__________________________________________________________________________________

[1] Doutor em Direito pela Programa de Pós-Graduação em Direito da PUCRS. Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UCS. Especialista em Direito Ambiental pela ULBRA. Coordenador da Especialização em Direito Animal do Ibnce – instituto brasileiro de novas conexões educacionais. Professor de Direito Animal da Faculdade de Direito do IPA METODISTA. Advogado. Email: ramme.adv@gmail.com | Instagram: @rogerioramme

[2] https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2020/08/cachorro-ingressa-na-justica-pedindo-indenizacao-a-pet-shop-por-danos-fisicos-e-psicologicos-ckdi987jz000g013gi60u0ab4.html

[3] https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2020/12/para-tj-cachorro-nao-pode-ser-autor-de-acao-de-indenizacao-contra-pet-shop-ckixepnp90028017wy34fge0d.html

[4] https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2020/08/tj-diz-que-caso-do-cachorro-que-tenta-ser-autor-de-acao-judicial-e-inedito-e-requer-analise-de-colegiado-ckdqfjzde006a0147imrw9s71.html

[5] BRASIL. RIO GRANDE DO SUL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA – TJRS. Agravo de Instrumento n.º 5041295-24.2020.8.21.7000/RS. Rel. Des. Carlos Eduardo Richinitti. 15/12/2020.

[6] https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2022/06/casal-ganha-na-justica-direito-a-indenizacao-por-fratura-de-maxilar-de-cao-durante-banho-em-pet-shop-cl3uf3han000u0167ql2tro2p.html

[7] Ação ajuizada pelas advogadas Evelyne Paludo e Waleska Cardoso.

[8] Juiz Federal no Paraná e Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Pós-Doutoramento em Direito Ambiental (UFSC). Doutora em Direito (UFSC). Estágio de Doutorado Sanduiche na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Mestre em Direito Público (PUCRS). Professora Adjunta da Escola de Direito da PUCRS. Advogada.